Olá para você que nos acompanha!
"Agatha é tão romântica, Louise! Até te propôs!"
Samantha, te conheço há tão pouco tempo, mas te considero o suficiente para afirmar com todas as letras que você é uma grande representação da voz do povo, que CLAMA para que esse casamento aconteça logo!
Tenho certeza que se a gente colocar Samantha e Maria Bernadete juntas, vai ter noivado mais cedo do que esperamos, hein?! Assim, considerando que as ídolas já não são se conhecem: na minha cabeça, já criei toda uma história sobre como Samantha já é vice-presidenta do Clube de Amantes do Mistério (CAM) só para fanficar sobre o romance de Louise e Agatha com mais pessoas, e ainda é parte de uma dupla famosa no mundo das fanfics Lougatha (já criei até o nome do ship!) ao lado de sua melhor amiga Maria Bernadete…
Alguns dirão que isso é fanfic, mas não acredite nessas pessoas! Posso não ter provas, mas tenho convicção disso e sei onde a Giu mora.
Ah, e falando em histórias inventadas (e a minha não é!), eu estava conversando com a Giu, e concluímos que desde já precisamos esclarecer algo muito importante para você, leitore: o Palacete Bolonha e a história do casal Francisco Bolonha e Alice Tem Brink foram uma inspiração muito grande para Palacete de Memórias, porém foi só isso, uma inspiração.
Francisco e Alice eram um casal que se amava e não se parecia em nada com o casal Bolognesa, viu? Inclusive, Francisco fez questão do Palacete Bolonha ter bastante janela para o povo ver a esposa tocando piano e trabalhando com arte, o que era uma grande afronta para as mulheres da época.
Agora que todas as histórias estão esclarecidas, vamos ver o desenrolar de mais uma que sei que você está querendo saber o que mais vai acontecer!
Fique com a Parte II de…
As Formidáveis Gomes & Doyle em Palacete de Memórias!
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Avisos: esta obra menciona relacionamentos e comportamentos tóxicos, machismo, gaslighting, homicídio, sangue, objetos afiados, agressões física e verbal, e violência doméstica. Alguns capítulos contêm cenas de susto e fazem alusão a conteúdo sexual.
Após o almoço com minha família, regado de assuntos sobre meu casamento com Norberto, encontrei-me com Gomes em frente ao Palacete Bolognesa. Enquanto descia do bondinho, após ouvir duas senhoras comentando da nova moda de luvas rendadas, avistei a arquitetura originalmente europeia, com algumas características do rococó em suas paredes amareladas. A cobertura à la mansard¹ possuía telhas pintadas para refletir a luz solar, já obscurecida pelo nimbo constante de carvão e óleo queimados em zepelins, carros e bondes.
Aquela era uma propriedade mais cobiçada do que seu falecido dono, o Dr. Bolognesa, um engenheiro abastado e conhecido por suas preferências clássicas, fruto de sua vida na Europa. A sociedade belenense da geração de minha mãe enxergava-o como um grande investimento marital. Foi assim durante anos, até ele retornar de uma viagem da Inglaterra em plenos votos de noivado com Margot Maxime, uma pianista francesa nem um pouco conhecida em nossas regiões.
Dizia minha mãe que o Dr. Bolognesa construiu aquele palacete como um presente de casamento para a noiva. Foi uma notícia espalhafatosa à época, e o casal proporcionou várias festas, das quais somente a elite participava. Nomes conhecidos foram convidados para a celebração do matrimônio, como a família Machado di Pietro, os Casavecchia — donos do jornal É du Norte —, Lady Morgana, Dom Juan Perez e outras grandes figuras. Assistir ao casamento era um sonho inalcançável para a juventude não privilegiada da cidade.
A entrada decorada com elementos florais adornava o semblante de Gomes. Ela usava suas roupas de costume: uma calça folgada, camisa de manga comprida de botão em tons pastéis e um colete que lhe servia para armazenar as bugigangas que certamente utilizaria para a investigação. Seus cabelos castanhos, normalmente presos, estavam soltos, e a brisa de meio-dia sacudia algumas mechas, emoldurando seu rosto e fazendo com que seu pequeno sorriso de cumprimento fosse uma obra de arte em que o pintor era a própria natureza. De longe, senti um cheiro almiscarado e doce, e um outro que não pude identificar a princípio.
— Ah, Louise! Que prazer em revê-la. — Quando se virou por completo, notei o cordão de barbante com alguns frascos de banhos-de-cheiro, o que explicava o aroma de patchuli.
— Gomes, quanto tempo. — Sorri, e ficamos alguns segundos nos encarando, um constrangido silêncio fazendo companhia. Pigarreei. — Tem em mente como procederemos com a missão?
— Ah, mas é claro! Aproveitei para pegar a planta do palacete no Museu Arquitetônico… — Gomes deu uma piscadela. — Bons contatos que preservo. Lembra-se daquela investigação que fizemos para os curadores do museu quando um colar com muiraquitã original das Icamiabas desapareceu?
Dei um sorriso nervoso. Claro que lembrava com carinho e ranço daquela investigação. Gomes havia conseguido me tirar de uma prova importante da faculdade alegando urgência — o que para uma médica significa “risco de morte”, e não um desejo de solucionar um mistério — para um final de semana adentrando os porões e passagens secretas no Museu Arquitetônico até encontrarmos o sobrinho da prima do curador principal do museu, que organizava leilões clandestinos de itens raros. A motivação de Gomes: provar que Lady Morgana estava por trás desses leilões. Resultado: sair na capa do jornal com um certificado de reconhecimento por recuperar o item, e ajudar-me a perder o título de melhor aluna do semestre para Misato, minha rival acadêmica na época.
— Aqui estão os cômodos que vamos investigar… — Gomes ergueu a planta na horizontal, permitindo que víssemos o interior segmentado do palacete, distribuído em dois andares e um sótão. Havia alguns riscos de “NÃO” em locais como aposento de empregados, banheiro público, quarto de hóspedes, lavanderia e salão de recepção. — Pedi às fadas que previamente adentrassem o recinto para verificar os locais com maior atividade fantasmagórica, o que nos levará ao quarto do casal, à sala de música, à cozinha do café da manhã e uns outros…
— Há mais de uma cozinha? — indaguei, surpresa.
— Aparentemente. — Gomes deu de ombros. — E o corredor principal. Milena Calypso, que liderou as fadas no palacete, atestou que esses são os locais com maior movimentação do casal morto, o que vai nos fazer economizar algumas horas de investigação, mas ela não garantiu que não encontraremos sinal deles em outros cômodos. Só que também não temos todo o tempo do mundo. Não queremos que o juiz autorize os policiais a ingressarem antes de acharmos a solução. Era só o que faltaria, os policiais ganhando meus louros enquanto estou aqui, há três dias acordada direto, à base de cafeína, para pensar em saídas mais ágeis para entrar no palacete!
Meu olhar dizia claramente que não havia um “não queremos” ou “queremos” nesse caso. Não havia nenhum “nós” entre nós duas, e Gomes, se percebeu, ignorou-me.
— Aproveitei que passei pela feira do Ver-o-Peso e fui cumprimentar umas amigas erveiras. Veja o que ganhei: “Comigo ninguém pode!”, “Afasta visagem”, “Mostra o que não quer ser visto”, “Espanta lobisomem”, “Abre caminho”… — Ela foi mostrando e explicando cada um dos frascos coloridos com seus respectivos rótulos, enquanto parecia não se importar com o fato de que seus dois primeiros botões da camisa estavam abertos, revelando uma parte do colo. Esforcei-me para pôr meus olhos nas cores vibrantes dos frascos em tons de amarelo, verde, azul e, então, um que ela amaciou, vermelho-vivo. Não ouvi nada do que falou, e só consegui erguer minha vista quando ela, literalmente, pôs um deles perto dos meus olhos. — Este é meu favorito!
Abriu a tampa e aproximou o frasco do meu nariz. Era um cheiro inebriante que combinava um toque apimentado, um almíscar amadeirado e um suave patchuli. Pisquei, quase embebecida. Ela riu.
— É, parece que funciona!
— O que é esse?
— “Faz querer quem não me quer”.
Revirei os olhos e contive-me para não lhe dar um tapa enquanto ela ria.
— Gomes, estamos em uma investigação! — Senti a queimação de constrangimento do peito às bochechas. Queria dizer tanto com aquilo, vontade reforçada pela conversa infeliz com Samantha, mas não consegui dizer ou fazer nada além de cerrar os dentes e respirar fundo para controlar a ruborização.
— É curioso como, sempre que está envergonhada, os aspectos profissionais ganham um contorno mais destacado. — Gomes sacudiu os banhos-de-cheiro e virou-se para o palacete, focando no telhado. — Interessante como os detalhes florais da entrada contrastam com o gótico nas agulhas do teto.
Encarei o telhado e prestei atenção no revestimento do imóvel. Parecia abandonado de perto, não suntuoso como antigamente. Algumas manchas acinzentadas e musgos se proliferaram pelas laterais. Embora as portas estivessem fechadas, era como se um suspiro viesse de dentro, uma corrente fria que se estendia pela escadaria até a calçada quente.
Esfreguei o braço quando senti o arrepio. Não era a primeira vez que eu e Gomes nos deparávamos com um caso envolvendo fantasmas, mas, como uma médica não legista, eu era a pessoa habilitada para salvar vivos, impedi-los de chegar a esse estágio, então não, eu não era a maior entusiasta ao lidar com mortos e seus espectros ainda tão vivos em matéria ectoplasmática ou em memória. E quando a morte inevitável sombreava uma cirurgia que eu porventura estivesse fazendo, só o que eu desejava era que a alma do meu paciente seguisse em frente, sem sussurros de traumas terrenos.
Um corpo morto não podia ser salvo, assim como algumas palavras podiam ser levadas pelo vento sem retorno, e algumas decisões podiam ser derradeiras. Todos esses elementos juntos levavam à grande incógnita que era lidar com fantasmas. Nunca se sabia como os ecos da vida se manifestariam no pós-morte, eis a dificuldade para pessoas racionais como Gomes lidarem com aquele tipo de investigação. Não havia um padrão a ser seguido, não havia uma solução prática experimentalmente realizada ao longo de anos de pesquisa, não se podia deduzir… Não! Era mais empatia e indução do que qualquer outra coisa.
— Louise… — Gomes encarou-me seriamente. — Eu a chamei por respeito ao nosso trabalho realizado com as fadas. Prometi a elas que a convidaria, mas sei que você não é muito adepta de investigações dessa espécie, embora sua… hm, sensibilidade pudesse ser muito útil. Ainda assim, quero que saiba: nada do que pretendo fazer aqui é uma obrigação sua. Posso entrar e…
— Não ouse sugerir que eu permitiria que ficasse à mercê de dois fantasmas em um casarão como esse. — Interrompi, e então sorri o mais confortavelmente que conseguia. — Estou bem, Gomes. Eu sempre fico bem quando estou com você.
Seus olhos arregalados foram os únicos indícios que me fizeram perceber a bobagem que eu havia dito. Era uma mentira, claro! No tempo em que ficamos afastadas, meus humores oscilantes pelas expectativas de suas ações, que eu mesma criava, e a realidade que vivíamos, não me vieram à mente quando soltei aquela frase. Mordi o lábio, amaldiçoando as conversas que tive com Samantha antes de ir ao encontro de Gomes. Talvez, toda vez que o assunto éramos eu e Gomes, nós duas, meu inconsciente se empolgasse com ideias que não poderiam sair do seu lugar imaginário, do campo das ideias.
— Eu… hm… Então, vamos! — Gomes finalmente disse. — É elementar que, para o início de uma despossessão fantasmagórica, tenhamos a autorização dos próprios fantasmas que assombram o local, caso não haja herdeiros. — Começamos a subir as escadarias da entrada enquanto Gomes continuava: — Todavia, para algumas regras, existem exceções, e algumas delas envolvem lidar de forma não convencional.
Ela tirou um dos frascos do cordão de barbante.
— O “Afasta Visagem” impedirá que o Bolognesa e sua esposa reconheçam nossa entrada…
— Mas isso não nos impede de sermos invasoras. — Engoli em seco quando um sopro gélido e grave saiu pelas frestas da porta de entrada, e desabafei choramingando: — Por que não podemos só expurgá-los mesmo?
— Não se expurga fantasmas, Louise. — Gomes encarou-me antes de abrir a rolha do frasco do banho-de-cheiro de cor roxa. Ela continuou a explicação retórica, sabendo que eu tinha conhecimento de tudo o que tinha a dizer: — Podemos exorcizar demônios e expurgar memórias amargas, mas fantasmas foram, antes de tudo, pessoas. Se donas dessas memórias ou vítimas desses demônios, só saberemos investigando.
O líquido roxo trazia um aroma de cadáver, eu sabia disso pela quantidade de amônia, fenol, formol e naftalina que usavam em necrotérios, porque: ou fui obrigada a frequentar para cumprir minhas aulas de anatomia ou fui arrastada por Gomes.
— Vamos mesmo espirrar isso na gente? — questionei, e, antes que obtivesse uma resposta, Gomes jogou parte do líquido em minha cabeça, e depois na sua própria.
Uma sensação de leveza me trouxe uma tontura, e tive medo de estar perdendo a noção da gravidade. Somente os olhos castanhos de Gomes lembravam-me de que precisava me manter em pé. Senti seus dedos quentes se entrelaçarem nos meus, e, juntas, demos um passo para a porta de madeira, adentrando o palacete como se atravessássemos uma manteiga, tão densos e diferentes que eram os ares dentro e fora do palacete.
De repente, estávamos em um hall escuro, iluminado apenas pelas aberturas das janelas fechadas e gradeadas. O ar estava cinza-azulado, neblinado por um clima completamente oposto àquela rua, que era de um sol escaldante envolto à fumaça dos veículos da cidade. Senti meus pulmões comprimidos pela atmosfera pesada e pendi para a frente, zonza.
— Louise!
A voz distante e preocupada de Gomes despertou-me. Ofeguei em busca de ar, mas a densidade daquele lugar parecia ter entupido minhas vias nasais. Senti uma dureza fria dos meus quadris para baixo, encostando no chão de madeira polida. O resto do meu corpo estava, para o meu assombro, deitado no colo de Gomes, seu rosto já tão próximo do meu que eu sentia sua respiração quente, seu hálito de menta — ela ainda usava a mesma pasta de dente, será? — fazendo cosquinhas em minhas bochechas coradas pela posição comprometedora em que estávamos.
Suas expressões normalmente curiosas e distraídas transformaram-se em uma carranca de apreensão. Com os dedos trêmulos, desfiz o nó franzido de sua testa, a textura suave de sua pele contrastando com minha luva de renda, e, ainda fraca, deixei cair a mão na gola de sua camisa.
— Louise?
— Estou bem! — menti, minha voz rouca. Pisquei para acostumar meus olhos à neblina que sobrevoava ao redor e, então, fiz menção de me levantar. Gomes ajudou-me, e eu cambaleei, apoiada em seus ombros. — Apenas a mudança de temperatura causou-me mal-estar.
— Não foi só a mudança de temperatura. — Gomes abriu o colete, de onde tirou o que acreditei ser uma luneta antes de sacudir e emitir uma luz, transformando-se em uma espécie de lamparina sem óleo. A luz iluminou a entrada, permitindo que víssemos as paredes decoradas com uma tapeçaria de veludo desgastado pelo tempo, com desenhos de espadas prateadas, cruzadas em fundo preto. — Esse local está carregado.
— De repente tão religiosa, Gomes? — Tentei provocar, mas minha voz trêmula denunciava meu nervosismo enquanto pisávamos no tapete geométrico que o Dr. Bolognesa provavelmente obtivera em uma de suas viagens ao Líbano.
— A religião, tal como a ciência, é uma forma de ver o mundo, minha cara Louise. — Gomes segurou minha mão, e eu fiquei grata por ter usado minha luva de renda para que ela não sentisse o suor gélido que escorria de minhas palmas. — Mas, nesse caso, refiro-me àquilo que é concreto e perceptível, afinal, estamos novamente em uma investigação fantasmagórica, e isso traz efeitos colaterais conhecidos.
— É diferente do que aconteceu em Sarreguemines…
Gomes parou no primeiro degrau da escada, encarando-me.
— Certamente não é a mesma situação de Sarreguemines! — Seus olhos castanhos pareciam irradiar lembranças que não queríamos compartilhar em voz alta, então, começamos a subir as escadas em silêncio enquanto passávamos pelos porta-retratos alocados na parede, pela tapeçaria repleta de poeira ameaçando entupir minhas narinas. Coloquei um lencinho no nariz para evitar respirar aquela sujeira e observei as pinturas em molduras amadeiradas. Uma delas se destacava: era o Dr. Bolognesa, o bigode ruivo de escovinha o denunciava. Nela, vestia um de seus ternos azul-marinho caríssimos, lenço branco no bolso da frente e um olhar de quem sabia que estava prestes a ser eleito o maior engenheiro da região.
Havia outros retratos dele, eu supus, de quando era mais novo. Seus pais eram italianos, mas viveram no reino britânico por mais tempo do que no outro lado da Europa. Cada lance de escada levava-nos a outra série de retratos dos Bolognesa, o corrimão repleto de poeira tanto quanto a parede.
— O que aconteceu com este lugar? — sussurrei. — Não parece o mesmo que palacete suntuoso que minha mãe comentou ter visto em jornais.
— Já faz algum tempo desde que viram algum empregado por aqui — explicou Gomes sombriamente. — Não estavam sendo pagos. Crise talvez? Desmazelo? De qualquer forma, a maioria está pedindo indenização pelos salários atrasados, o que só será possível por meio do pregão e venda do imóvel.
Ao finalmente chegarmos ao último andar, notei um retrato pequeno e quase insignificante do Dr. Bolognesa e sua esposa, Margot Maxime, uma mulher magra, de estatura alta, até um pouco maior que o marido. Seus cabelos louro-pálidos, pintados em tinta a óleo no retrato, seus olhos azuis-turquesa encaravam com tristeza para além da tela. Os dois estavam vestidos de noivos, em frente à entrada da Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, a plataforma enfeitada com fitinhas coloridas, um contraste gritante de felicidade, se comparada às expressões da noiva. O Dr. Bolognesa, porém, ostentava a mesma carranca presunçosa de todas as outras retratações.
— Um retrato com a esposa, e o resto, só dele e de seus feitos — comentei, tentando não usar um tom de julgamento, mas já usando. — Ele realmente construiu esse palacete para a esposa?
— As histórias sempre contam que homens dedicam suas maiores obras às amadas, mas, no fundo, as verdadeiras musas são eles próprios. — Ela deu um meio sorriso e, sacando o mapa da planta do interior do colete, colocou a luz da luneta-lamparina sobre o papel. — Bem, vamos começar pelo óbvio: quarto do casal.
Ao empurrar a porta, Gomes acabou aplicando mais força do que deveria, e um rangido ingrato ressoou. Ficamos em silêncio, respirando, vagarosas, enquanto um sopro passava por nós duas. Senti arrepios por todo o corpo quando o espectro atravessou o corredor, uma nuvem escura e densa, como um prelúdio de um temporal horripilante. E, ainda que tivesse forma humana, era distorcida, contra as leis naturais. Aproximei-me de Gomes, sentindo meus pelos eriçarem pela respiração arrastada que ouvi.
— Quase fomos pegas — sussurrou Gomes, tensa. — “Afasta visagem” não funciona com objeto, só com alma.
— Então que tal não fazer barulhos enquanto um fantasma, em seu pleno direito de ir e vir, ronda a própria mansão? — grunhi em resposta, agarrando a manga de sua camisa, meus dedos trêmulos. — Quanto tempo a magia das fadas vai durar?
— Cerca de três a quatro horas. Como dividimos, imagino que os efeitos tenham caído pela metade.
— Por que não comprou um pra cada? — perguntei esbaforida. Gomes boquiabriu-se.
— Eu ganhei este. Sabe quanto é um banho-de-cheiro “Afasta Visagem”?
Inspirei fundo, querendo me estapear pela pergunta tola.
— Então precisamos nos apressar, vamos! — Tomei a liderança, mais preocupada em ser pega pelos fantasmas do que em resolver o crime a tempo. Só queria sair daquele local.
Caminhamos nas pontas dos pés para dentro do quarto do casal, um enorme recinto que, para o tamanho, detinha poucos móveis, consistindo apenas em uma colossal cama enfeitada com edredons cor de vinho e um dossel ostentando cortinas semitransparentes com figuras de cisnes bordados. Em uma das paredes, uma estante de livros empoeirada, que parecia intocada fazia meses. Ao lado da cama, havia um armário grande de cedro, com alguns ternos expostos e repletos de teias de aranha. Do outro lado, uma penteadeira pintada de dourado, cuja superfície tinha uns pequenos frascos de perfumes importados espalhados junto a um pente com haste de prata. Reconheci-os logo, pois eu mesma havia trazido alguns da França.
Ao pisar em um assoalho solto, provoquei um som agudo com o salto.
Gomes e eu nos entreolhamos assustadas quando a mesma neblina adentrou o quarto. Prendemos a respiração enquanto o fantasma rondava o aposento, transpassando Gomes quase que inteiramente. Ela piscou e segurou no batente da cama. Fiz menção de ir até ela e conferir se estava bem, mas Gomes ergueu a mão em sinal de “pare”. Engoli em seco, sentindo uma gota de suor deslizar pela minha espinha. Era aquela sensação de ser atravessada por um fantasma: como se parte de mim, não corpórea, estivesse se soltando para depois retornar com força para meu corpo.
Assim que o espectro saiu do quarto, abaixei-me para tirar meus saltos e dei longos passos em direção a Gomes, apoiando-a pela cintura.
— Você está bem? — sussurrei, preocupada com sua pele pálida e fria. Ela tentou soltar-se de mim, aturdida.
— Absolutamente, minha cara…
Mas sentou-se abruptamente na cama, passando as mãos pelo rosto e suspirando.
— Odeio casos envolvendo fantasmas — confessou. Sentei-me ao seu lado e fiquei passando a mão pelas suas costas. — Por mais de um motivo.
— Por qual outro motivo que não o de sofrer possessão fantasmagórica? — Eu ri baixo, tentando aliviar os sintomas do “atravessamento”.
— Porque os fantasmas de Sarreguemines ainda rondam meus pensamentos.
Os olhos de Gomes, desamparados, fixaram-se nos meus, e faíscas de lembrança atordoaram-me: o quarto apertado, a única cama que dividimos e a sensação de que um passo, para frente ou para trás, seria o suficiente para saber que não haveria como voltar a ser o que éramos… Um único movimento meu. O tormento de saber que tudo o que eu mais queria estava ao meu alcance, apenas um toque de distância… Mas, como um castelo de areia, poderia desmoronar a qualquer instante, voltar a ser apenas poeira.
E como se tivesse levado um choque, soltei as costas de Gomes.
— Va-vamos focar aqui, sim? — sugeri, sentindo-me enjoada, a culpa corroendo-me do estômago ao peito.
Gomes assentiu e pediu para que eu arredasse. Assim que o fiz, ela deitou-se na cama, olhando para o teto. Encarei-a sobressaltada.
— Gomes! — Segurei minha voz para não gritar de indignação. — Não é hora de tirar um cochilo.
— Tomei uma tigela enorme de açaí com farinha das bagudas. Preciso de uma soneca, por favor. — Deu uma piscadela.
— Agatha, levanta daí agora!
— Faz parte da investigação descansar um pouquinho.
— Como cheirar sangue de fada? — Ergui uma sobrancelha, inclinando-me um pouco sobre ela. — Se eu fosse sua médica, o que aparentemente não sou, eu, com certeza, não recomendaria o uso de métodos tão pouco convencionais.
Gomes bufou um riso, provavelmente para não chamar a atenção dos fantasmas, mas quis acreditar que também era para disfarçar o nervoso ao sentir minha proximidade. Porém, em poucos segundos, ficou séria, dando tapinhas do outro lado da cama. Neguei com a cabeça.
— Não vou me deitar aí.
— Louise, preciso que sinta o que estou sentindo.
Ainda que estivesse tentada, olhei horrorizada para a cama e para Gomes.
— Agatha, não vou me deitar nessa cama contigo!
— Louise, por favor… É desconfortável, precisas sentir isso.
— Que bom que agora somos fiscais de qualidade das camas dos fantasmas.
Ela revirou os olhos, deixou a luneta-lamparina no chão e, com as duas mãos, agarrou minha cintura em um brilhante golpe de alguma arte marcial que aprendera em… algum lugar, certamente. Caí no colchão, sufocando um grito, pronta para me virar e xingá-la quando senti um incômodo em minhas costas. Não era físico, era para além disso. Vinha de uma angústia indescritível. Gomes encarava-me, estudando minha expressão.
— É… desconfortável.
— Sim, foi o que eu disse.
— Em um nível que não consigo descrever.
— Tente… — Gomes segurou minha mão, acalmando-me. Inspirei fundo enquanto me concentrava. — Por favor, é importante sua opinião. És mais sensitiva que eu! Precisamos que se concentre.
Era irônico que a sensitiva ali fosse eu, que tanto dediquei-me aos estudos dos vivos na ciência médica. Ainda assim, por Gomes, fechei os olhos, permitindo-me ser agarrada pelos lençóis invisíveis que inundavam meu corpo com uma atmosfera nova.
A angústia penetrou meu peito, sufocando-me.
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¹ “o sótão” (tradução livre).
Continua…
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CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais e Val Alves
Preparação: Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado: Fernanda Nia
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A próxima Noveletter, com a Parte III de As Formidáveis Gomes & Doyle em Palacete de Memórias, sairá no dia 03/08.