Olá para você que nos acompanha!
Você ainda lembra da entrevista com a Giu no início da nossa jornada em que eu pedi para a Giu discorrer sem contexto sobre a frase “Nós sempre teremos Sarreguemines”? Agora que tem um contexto, eu gostaria de saber como VOCÊ se sente. Não sei se compartilhamos do mesmo sentimento, mas não quero que Agatha e Louise tenham apenas Sarreguemines como as melhores memórias da vida delas. Essas duas merecem essa memória (boa enquanto durou) e toda a felicidade de uma casa de campo e um pônei que as fanfics de Maria Bernadete Silva da Costa e Silva-Silva poderiam proporcionar, e muito mais.
(Tá lendo isso, né, Giu??? Não lembro de já ter te ameaçado, mas para tudo tem uma primeira vez na vida…)
Bom, seja como for, finalmente chegamos na última parte de Palacete de Memórias.
Ainda não consigo acreditar que passamos dois meses juntes para mais uma história! Também nunca sei como me sentir, porque ao mesmo tempo em que a felicidade de mais um história se encerrando bate, também vem aquele sentimento de tristeza justamente por ser mais uma história que está se encerrando. Não sei se isso acontece contigo também, mas junto a felicidade e a tristeza, sempre, SEMPRE tem aquela vontade de QUERO MAIS, ME DÊ MAIS AGORA no final, e com as nossas formidáveis, essa sensação é particularmente exacerbada porque eu e você sabemos que ainda tem mais aventuras pela frente e muitas coisas ainda precisam ser resolvidas.
Mas se servir de consolo, essa última parte está enorme!
E em breve, voltarei com mais atualizações sobre a Noveletter, mas enquanto isso, fique com a última parte de…
As Formidáveis Gomes & Doyle em Palacete de Memórias!
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Avisos: esta obra menciona relacionamentos e comportamentos tóxicos, machismo, gaslighting, homicídio, sangue, objetos afiados, agressões física e verbal, e violência doméstica. Alguns capítulos contêm cenas de susto e fazem alusão a conteúdo sexual.
O motivo da morte do casal, a forma como faleceram… Curiosamente, aquela investigação não era sobre isso. Na verdade, sequer se tratava de buscar respostas a uma indagação referente às mortes diretas. Tínhamos, na verdade, uma tarefa a ser feita, e isso envolvia uma solução mais emocional do que racional.
— Eu tive algumas escolhas, diferente de você, mas resolvi seguir em frente, de acordo com o que fui criada a fazer — sussurrei sem tirar os olhos do corpo morto do Dr. Bolognesa, tentando manter a proximidade emocional com Margot. — Gomes foi o sacrifício que fiz pelo que era melhor para mim. A única coisa que tive que deixar para trás em toda minha vida foi ela. Eu posso não entender como se sentiu quando teve que tratar Claude daquela forma para afastá-lo, para que ele se sentisse menos traído pelas circunstâncias que rondavam vocês. Tinhas uma vida mais complicada que a minha, certamente.
Margot negou, chorosa.
— Não.
— Perdão?
— Não se trata disso. — Margot cruzou os braços, encarando o próprio corpo morto, largado sobre o tapete com sangue escorrendo pelo torso. — Eu me sentia culpada justamente porque não acreditei que conseguiria seguir com Claude. Ninguém o respeitava, nem mesmo sua própria família. Ou eu, ou uma de minhas irmãs se casaria com o nobre estrangeiro rico… — Ela riu, suas mudanças de humor abruptas preocupando-me. — Na verdade, fui a primeira a me voluntariar por ser a mais velha. Acreditava que partir com ele me daria condições de ser uma pianista de renome.
— E foste essa pianista!
— A troco de quê? — Ela encarou-me, enraivecida. — A troco de viver no passado, arrependida da minha escolha? Deixei meu marido definhar, enlouquecido, sem cuidados que uma esposa deveria ter com ele.
— Não tinhas obrigação de ser essa pessoa que ele tanto queria. — Impus-me sobre ela.
— Se não fosse esse maldito espelho, talvez nosso casamento não tivesse tido um fim tão trágico… — Ela aproximou-se da moldura em prata. — Foi uma fixação que começou a crescer com o passar dos anos. Eu só conseguia pensar em retornar para esta sala, tocar a música que meu Claude tanto amava. Só conseguia querer cruzar esse vidro para me jogar em seus braços e perder-me no tempo…
Na medida que descrevia suas desventuras com o espelho, os reflexos do dito cujo mudavam, mostrando-lhe Claude abraçando-a protetoramente. Aproximei-me dela para afastá-la do espelho, mas assim que fiquei logo atrás de Margot, a superfície de vidro tremeluziu até me mostrar uma versão minha e de Gomes um pouco mais velhas, caminhando de mãos dadas, risonhas na Praça Batista Campos, as garças sobrevoando no final de tarde.
Meu coração saltou de um jeito inesperado, sufocando-me. Ergui a mão para tocar no vidro e frustrei-me por não conseguir atravessá-lo.
— Podemos ficar aqui, Louise Doyle — sussurrou Margot, ainda encarando o reflexo de uma versão sua e de Claude juntos. — Desfrutar da companhia de quem verdadeiramente amamos…
Ver-me tão feliz ao lado de Gomes despertou uma euforia paralisante. Ajoelhei-me perante o espelho, adorando a imagem que seguia em repetições. Aquilo poderia acontecer um dia, então? Talvez não mais, não com um casamento sendo elaborado, não com a expectativa de minha família sobre a minha união com Norberto. Mas, e se talvez, talvez eu pudesse levar aquele espelho comigo? Então, quando Norberto estivesse viajando, eu poderia viver meus sonhos não vividos com Gomes. E se…
— “Abre caminho!”
Fumaças azuladas preencheram a sala, sufocando-me. Margot soltou um berro de susto que reverberou pelo espaço. Atrás das fumaças, próximo da porta, Gomes surgiu com um par de cordas salpicadas de sal grosso que lançou sobre Margot. As cordas encantadas enrolaram-se em seus pulsos e tornozelos.
— Louise!
— Go… — Arrastei-me até ela enquanto os gritos de Margot causavam-me um tremor no corpo. Ainda estávamos ligadas por nossas memórias compartilhadas, então, cenas repetidas do assassinato misturadas àquelas que vivenciamos começaram a nublar minha visão focada em Gomes, que me segurou pela cintura, ajudando-me a levantar. — Agatha, precisamos sair daqui!
— O que aconteceu?
— Margot não vai embora. O espelho… — Apontei para o maldito. Estava sacudindo, apresentando uma variedade de memórias do que fora e do que podia ter sido. Ora era Claude e Margot sorridentes na loja de perfumes, ora éramos eu e Gomes emaranhadas por um lençol branco sob o luar … — Gomes, eu…
Se ela viu o que vi, optou por não me fazer perguntas. Estava encarando a cena do assassinato na sala: o corpo de Margot contorcido próximo ao piano, uma abertura ensanguentada no robe indicando a perfuração pelo canivete do Dr. Bolognesa.
— O grilhão é ela. — Gomes concluiu sem que eu precisasse explicar e, então, encarou a fantasma contorcendo-se em suas cordas mágicas. — Margot, precisas ir embora!
— Não, não posso deixar Claude.
— Quem é…
— Margot, você e Claude nunca… — Tentei acalmá-la, mas a breve menção de que tudo o que via e sentia no espelho era mentira deixou-a sem controle.
O grito não resignado ecoou pelos corredores.
— Se havia uma chance de o palacete inteiro não despertar para nossa presença aqui… — disse Gomes com uma calma que eu sabia que ela não estava sentindo. — Já era. Precisamos pegar o beco…
O interior da sala começou a se tornar mais viscoso, pesado, como se estivéssemos dentro de um aquário de óleo, ao invés da leveza fluida que senti quando entrei no recinto. Os objetos começaram a flutuar, e a gravidade mudou, tornando nossos corpos leves demais para aquele lugar. Gomes distraiu-se o suficiente para que Margot conseguisse puxar a corda que a prendia, desfazendo o nó com agilidade. Ela começou a se arrastar até o espelho, como uma pessoa no deserto sedenta pelo oásis, e eu a segui, tentando respirar, ainda que o ar estivesse denso demais para um corpo humano vivo. Eu não tinha forças sequer para ficar de pé, então engatinhei, aproveitando o atrito do carpete, tentando alcançar o espelho antes de Margot.
A energia da fantasma estava a níveis perigosos. Seus desejos materiais tinham criado uma atmosfera de tensão tão forte com a realidade que o palacete parecia se submeter às emoções dela, agora sombrias e mais nebuladas do que nunca. Aqueles sentimentos revestiam o lugar como uma âncora, tornando cada vez mais difícil distinguir as leis da física naturais e o surrealismo do mundo de uma alma morta.
Antes que eu ou Margot pudéssemos chegar ao espelho, Gomes arquejou. O corpo sem vida do Dr. Bolognesa começou a se mover do chão, sua expressão ensandecida, combinada com o rosto coberto de sangue e a perfuração no pescoço, dava-lhe um aspecto quase demoníaco. Não parecia ser um eco de suas lembranças, e sim o fantasma do próprio Dr. Bolognesa, despertado pela agitação na sala onde se originou o estopim para sua morte.
Gomes sacudiu o cordão de banhos-de-cheiro em busca de algum que funcionasse, mas não antes de o morto Dr. Bolognesa avançar sobre mim, seus dedos ensanguentados enroscando em meu pescoço, como se fosse eu seu alvo.
— Desgraçada, eu te achei!
Enquanto ele se distraía comigo, Margot aproveitou a oportunidade para continuar sua trajetória em direção ao espelho. Lágrimas acumularam-se em meus olhos com a força com que Dr. Bolognesa sufocava-me, o ar começando a ficar escasso.
— Gomes… — Engasguei tentando me soltar. — … não deixe Margot chegar ao espelho!
Agatha estava correndo até mim quando parou, assombrada com minhas ordens. Então, retirou um de banho-de-cheiro, girou para ganhar impulso e jogou o frasco em direção a Margot.
— “Quebra-Feitiço”!
O líquido amarelado tremeluziu e explodiu sobre Margot. Ela, a fantasma mais poderosa do palacete, havia conseguido nublar os sentidos até mesmo do espírito do marido por quase dois dias inteiros. Com o “quebra-feitiço” de Gomes agindo no sobrenatural, Margot perdeu sua regência sobre os nossos sentidos. A sala começou a se modificar aos poucos, voltando ao estado original do momento da morte.
O Dr. Bolognesa me soltou, e eu pude respirar aliviada o ar menos carregado que antes, embora com um nítido cheiro de sangue. Gomes apressou-se em se ajoelhar ao meu lado, os olhos franzidos de preocupação. De relance, percebi o corpo fantasmagórico do engenheiro investir-se contra a esposa.
— Sua vadia desgraçada! — gritou ele, agarrando Margot pela cintura. — Não vais escapar de mim de novo!
— Fique longe de mim! — vociferou Margot. — Seu desgraçado! Tiraste minha vida e ainda me persegues no pós-vida! Me deixe em paz!
— Sua cadela imunda! Se não fosse tua obsessão por esse espelho… — Ele atracou-se nela, tentando enforcá-la do mesmo jeito que fizera comigo, mas Margot segurou-o pelos cabelos, afastando-o. Embora fantasmas, ambos pareciam sentir dor física, como se os ecos da última briga ainda refletissem neles.
— Precisamos destruir esse espelho… — disse Gomes, em conclusão lógica.
Encarei o vidro, o reflexo mostrando as imagens que eu tanto queria vivenciar. Parecia que a moldura de prata esboçava um sorriso vitorioso sobre mim, instigando-me a protegê-lo, chamando-me pelos meus sonhos. Não consegui controlar minha língua:
— Não, não podemos — sussurrei, o reflexo de uma vida que eu nunca teria começava a passar como filme pelo espalho. — É um espelho raro. Precisamos guardá-lo.
Gomes pegou meu queixo e virou-me para ela, seus olhos castanhos sérios e preocupados.
— Louise, seja lá o que viu ali, não é real.
Suas palavras me perturbaram. Minha mente gritava para ter paciência, para entender o que ela queria dizer com aquilo, mas tudo o que senti foi uma angústia sufocante, uma solidão que corroeu meu estômago de medo. Tentei soltar-me dela, sentindo-me como se estivesse afogando em mar aberto, buscando uma superfície que não conseguia alcançar.
— Não! Solte-me, Agatha!
— Louise, por favor, pare! É o efeito do espelho, olhe pra mim. — Ela me apertou ainda mais contra si, puxando minha cabeça para longe do espelho.
Gomes encarou o casal que brigava à nossa frente, próximo do objeto amaldiçoado. Pareceu ficar em dilema por alguns segundos, os dedos tamborilando um frasco de banho-de-cheiro vermelho-vivo. Debati-me um pouco mais porque sabia exatamente o que se passava em sua mente tão inteligente.
— Agatha… — Segurei seu rosto confuso com as duas mãos, minha voz desesperada em soluços. — Por favor, não!
Ela fez uma careta de dor, e eu, conhecendo-a tão bem, sabia que sofria por me ver naquele estado. Suas mãos seguraram as minhas, apertando-as como se quisesse mantê-las em suas bochechas, enterrá-las em segurança.
— Louise, o que você vê?
— Eu… Eu vejo nosso “e se…”, aquele que não tivemos — sussurrei, convincente, aproximando-me dela e colando nossas testas. Parte de mim queria gritar para que ela jogasse aquele banho-de-cheiro explosivo contra o espelho, mas a outra queria, enlouquecida e desesperadamente, que ficássemos daquele jeito para sempre, encarando uma realidade que não tínhamos conseguido construir. — Agatha, por favor, não nos destrua novamente!
Aquilo foi cruel. Eu não queria dizer aquilo, eu não queria. Eu sentia, é verdade, eu culpava Gomes por não estarmos juntas, mas não era justo! Não podia dizer-lhe o que sentia sobre nós daquela forma, naquele estado febril de desespero.
Gomes não interpretou da melhor forma. Ela se retesou, soltando minhas mãos e empurrando-me com leveza, ainda tão gentil, mesmo quando seus olhos esboçavam uma dor e um ódio que não lhe eram comuns. Ela vociferou:
— Sim. Tens razão, Louise, não posso nos destruir novamente!
Ela ficou de pé, ignorando minhas lamentações, e o máximo que pude fazer foi me agarrar aos seus calcanhares. Só ouvi sua voz gritar “Égua do calor!” antes de jogar o frasco contra a superfície vítrea, onde havia um retrato perfeito da noite em que Gomes havia me dito tanto naquele quartinho escuro em Sarreguemines.
— Eu queria que aquilo nunca tivesse acontecido — disse ela, em claro e bom som. Soltei seu calcanhar, mais em choque pelas suas palavras do que pela explosão que o banho-de-cheiro provocou ao atingir o espelho, espalhando estilhaços ao redor.
O impacto da explosão nos jogou para o outro lado da sala, e eu caí rolando, batendo de mau jeito meu pulso direito.
— Louise! — Gomes correu até mim, segurando meu pulso dolorido. Grunhi de dor e tentei imobilizá-lo ao mesmo tempo em que tentava me afastar dela, incapaz de encará-la depois que ela dissera tão nitidamente que se arrependia da noite mais importante de minha vida.
Alheios aos nossos problemas internos, Margot e o marido pararam de se engalfinhar, encarando-se assustados antes de se virarem para nós duas, confusos.
— Vocês precisam partir! — disse Gomes, serena. — Não podem ficar aqui por mais tempo, caso contrário, esse palacete de memórias se tornará uma Casa-Amaldiçoada. É isso que vocês querem que um patrimônio tão importante de vocês se torne?
O Dr. Bolognesa levantou-se, perturbado.
— Não posso permitir que nosso lar se torne um monstro. — Ele abaixou-se para a esposa. — Mas, no fim, ela é quem decide.
Margot estava ainda no chão, olhando desamparada para o que tinha sobrado do espelho quebrado.
— Claude… — sussurrou, lágrimas escorrendo dos olhos. Ela enterrou a cabeça no carpete, o corpo sacudindo em soluços. — Claude!
— Margot, siga em frente, que eu irei! — rosnou o Dr. Bolognesa, apontando para ela. — És o grilhão que me prende neste palacete. Tire-nos daqui!
Soltei-me de Gomes e, cambaleando, aproximei-me de Margot, ignorando a confusão no rosto do Dr. Bolognesa, com sua expressão tornando-se inquisidora em poucos segundos. Com a mão sem dor, massageei os ombros da fantasma, sem conseguir odiá-la, mesmo depois de tudo.
— Margot, eu gostaria que tivesse sido diferente pra ti. — disse eu, e ela encarou-me ainda chorando, mas ao menos atenta. — Eu lamento por tudo: por tuas escolhas erradas, pelas circunstâncias que te levaram a elas… E pelo que deixaste pra trás.
Margot fungou, assentindo.
— Agora está na hora de deixar isso para trás também. — Percorri os olhos pela sala, mas imaginando todo o palacete do casal. — Aqui não há nada além de suas memórias amargas, salpicadas de muita dor e sofrimento. É melhor revivê-las eternamente ou se arriscar no incerto que te espera no pós-vida?
— O melhor é viver com Claude!
— Quem é Claude? — questionou o Dr. Bolognesa.
— Mas Claude é teu passado — disse eu, pressionando seu ombro. — O espelho só se alimentava dos teus desejos. Dê a ti mesma um pouco de paz, Margot.
Não sabia precisar quanto tempo tinha passado, se segundos ou minutos, mas, aos poucos, seus olhos azuis cheios de dor foram se tornando mais lúcidos e resignados. Ela inspirou, erguendo-se e encarando o marido com desgosto.
— Até que a morte nos separe — disse ela, imponente. O Dr. Bolognesa devolveu o olhar com altivez.
— Ela já nos separou.
Encarando-se como se o ódio fosse o único fio que os conectava, seus corpos começaram a emitir um brilho nas bordas. Antes que seu semblante desaparecesse em um rompante de luz, Margot olhou para mim. Seus olhos agradeciam-me em silêncio, uma compreensão sensível que só duas pessoas que viram os maiores erros e acertos uma da outra conseguiriam alcançar.
— Adeus! — despedi-me, e seus fantasmas foram consumidos pela luz, uma brisa fresca e singela rodeando a sala.
Gomes já estava sobre a cena do crime, observando a forma como os corpos estavam dispostos no chão, o sangue ainda de cheiro intenso impregnando o local de tal maneira que me perguntei como ela não se incomodava de estar tão perto das poças do líquido viscoso.
— Como está a mão? — perguntou, tocando com leveza metade do vaso quebrado que Margot usara para acertar a têmpora do marido, após colocar uma luva que certamente saíra de algum de seus muitos bolsos.
— Nada que uma tala, gelo e um anti-inflamatório não possam resolver — respondi, a voz embargada, enquanto usava a mão direita para limpar algumas trilhas de lágrimas, que só naquele momento percebi existirem. Funguei, e Gomes levantou-se para vir ao meu encontro, apertando meus ombros.
— Louise, acredito que precisamos conversar sobre o que vimos. — Ela parecia determinada, muito diferente da pessoa que havia dito que se arrependia de ter se confessado.
— Não há nada para dizer — falei, séria, e ela soltou meus ombros como se tivesse levado um choque. — Continua tua investigação, Gomes. O espelho ainda não foi analisado, por sinal. — Gesticulei em direção ao objeto.
Gomes hesitou por alguns segundos, antes de assentir, cabisbaixa, e dirigir-se em direção à moldura, a única parte do espelho ainda intacta. Evitei encará-la e preferi ver os corpos mortos do casal com uma morbidez quase apática.
— Como suspeitei… — disse ela, parecendo irritada. Dessa vez, virei-me para saber do que falava. — “Produzido em Londres, no ano de 1988, este espelho reflete o meu maior desejo. Renovo meus votos de estima ao novo casal. Com fraternos cumprimentos, L. M.”.
Talvez fosse a dor ou, ainda, o que restou de mim depois de tantas emoções e memórias, mas não consegui entender sua conclusão repentina.
— Não compreendi.
Gomes saiu de trás da moldura do espelho com uma expressão sombria.
— Foi o mesmo ano em que Lady Morgana obteve os utensílios que está leiloando e, curiosamente, o ano em que Bolognesa anunciou estar trazendo Margot Maxime para Belém. Ou seja, deve ter sido em 1888 que ele rejeitou Lady Morgana para ficar com Margot. E eles ainda viajaram no mesmo navio na ocasião, então é possível que Lady Morgana tenha vindo ao Brasil já com o presente de casamento amaldiçoado. Ela estava com o coração partido e o orgulho ferido. — Gomes grunhiu de raiva. — É lógico que ela sabia sobre o espelho amaldiçoado, já estava de olho neste palacete quando Bolognesa começou a construí-lo, ela era uma musa inspiradora para a arquitetura do local e sempre gostou de colecionar imóveis luxuosos. É seu passatempo favorito há mais de quinze décadas, se meus dados sobre seu domínio de boa parte dos palacetes e mansões em Edimburgo estiverem corretos.
Quis inquirir Gomes sobre suas acusações, afinal já estava acostumada com suas elucubrações contra Lady Morgana, mas me lembrei do presente que encontramos no antiquário do Dr. Bolognesa, o relógio prateado, junto à carta que não deixava margens para presumir um relacionamento no mínimo íntimo suficiente para não dizer apenas “amizade”.
Mas eu e Gomes tivemos um momento íntimo e ainda éramos consideradas amigas. Talvez, para o Dr. Bolognesa, o que ele e Lady Morgana tiveram não era nada além de uma aventura entre amigos. Senti-me enojada por comparar Gomes ao Dr. Bolognesa, contudo, ela não estava fazendo nada que pudesse justificar o contrário.
Gomes encarava-me em expectativa, um olhar animado dizendo-me para inquiri-la mais sobre suas conclusões, sobre sua missão e suas ideias.
E eu estava farta.
— Uma hora e meia de efeito, certo? Já deve ter dado o tempo necessário. — Dirigi-me para fora da sala. — O delegado já deve estar nos aguardando a essa altura.
Saímos em silêncio, passando pelo corredor iluminado por lustres, o que nos permitiu ver em detalhes os mosaicos brancos e azulados no chão. O palacete inteiro estava exatamente do mesmo jeito que fora deixado quando os donos faleceram.
Diferente de quando entramos, o sol já estava se pondo lá fora, pintando o céu de um laranja esfumaçado, quase terroso, devido às fumaças dos zepelins. Algumas viaturas estavam ao redor do imóvel junto a um carro que trazia a logo de um dos jornais da cidade. Uma entrevistadora animada veio em nossa direção, e eu prontamente me desviei dela, mas não antes de sentir a mão de Gomes no meu cotovelo. Virei-me, seu olhar pedindo-me para ficar, ao mesmo tempo que ela tentava desviar do radiofone que a entrevistadora enfiou debaixo do seu queixo, enchendo-a de perguntas surpreendentemente pertinentes sobre como ela havia conseguido soltar os grilhões dos fantasmas do Dr. Bolognesa e de Margot.
Com meu silêncio taciturno, Gomes desistiu e voltou-se para a entrevistadora com um sorriso confiante, respondendo-lhe tudo com a velocidade de uma vitrola. O Delegado Astrogildo, quase dois palmos mais baixo que eu, estava em seu típico fraque cor de manga, usando um chapéu panamá. Ele veio falar comigo com suas bochechas rechonchudas e com covinhas, agradecendo-me.
— Tenho mais uma missão pra essa dupla infalível! — disse ele, todo sorrisos.
— É com ela, senhor delegado… — Indiquei Gomes com a cabeça — … sempre. A mim só compete ajudá-la, quando necessário.
Ele pareceu confuso, e já ia vir com uma saraivada de perguntas, quando notei, atrás das viaturas, um novo veículo. Senti minha pressão cair ao perceber que se tratava do carro dos meus pais, e quando a luz do pôr do sol desceu sobre a carranca mal-humorada de minha mãe saindo do banco do carona, eu sabia que tinha cometido uma grande gafe.
— Eu posso explicar — sussurrei antes de ouvir o sermão, aproximando-me dela.
— Não há explicação pra essa pouca vergonha. — Toquei com leveza no meu próprio braço, os lábios trêmulos. — Louise, veja só como estás, minha filha. Mais uma vez! Quanto mais podemos aguentar? Em breve estarás tão machucada que nem andar vais poder.
— Maman, eu…
— Ainda por cima, como se jogas nessa investigação fajuta hoje? Logo hoje, ma fille, que Norberto chegou de viagem! Era para tu estares conosco na Estação das Docas esperando por ele! Perdeste a prova do próprio vestido de noiva hoje!
— Eu sei. — Minha voz saiu mais embargada do que eu queria. Ela tinha razão em estar tão enraivecida, ela se dedicava de corpo e alma ao meu casamento, enquanto eu sequer podia comparecer à prova do meu próprio vestido. — Sinto muito.
— Sente muito? Imagine o peso nos nossos bolsos por pagar adiantado a prova. — Ela grunhiu, encolerizada. — Vais amanhã, sem falta, Louise Beauregard Doyle, e dê um jeito nesse pulso.
— Podemos adiar — sugeri, esperançosa. — Até meu pulso melhorar.
— Mais uma vez, Louise? Norberto está, neste momento, reservando um jantar no La Massile, ansioso para te ver. Que falta de consideração da tua parte não estar lá para recebê-lo quando desembarcou. Tinhas que ver! Ele trouxe um lindo buquê de orquídeas, tuas favoritas…
Não era verdade. Orquídeas eram lindas, mas eram as favoritas de maman, embora ela dissesse a todos que nossos gostos eram iguais. Eu, por minha vez, sempre preferi lírios brancos como as nuvens. Talvez a única pessoa que soubesse disso era aquela que tanto me machucara naquele dia.
— Em vez disso — ela continuou —, veio se machucar em uma missão com essa… — Ela engoliu, sabendo que não me agradariam seus xingamentos direcionados a Gomes. Ainda assim, não se conteve: — Essa dissimulada e inescrupulosa detetive!
— Eu… — Tentei encontrar forças para contrariá-la, mas a verdade é que ainda sentia o peso de muitas imagens e palavras ecoando em minha mente. — Achei que seria rápido — menti, sentindo-me culpada de repente. — Sinto muito. Havia esquecido que ele retornaria hoje, e que tínhamos agendado a prova do vestido.
Outra mentira. Eu estava me tornando especialista nisso. Maman resmungou antes de entrar no carro, incrédula com minhas desculpas esfarrapadas e chateada com meu aparente desinteresse pela prova do vestido. Antes de entrar no carro, virei-me para Gomes, que havia finalmente terminado a entrevista e conversava com o delegado, a mão no queixo em concentração, enquanto ouvia o que poderia ser mais uma missão.
Enquanto eu a observava, seus olhos de citrino me encararam por alguns segundos. Naquele breve momento, perguntei-me por que ela ainda era meu grilhão, quando até mesmo uma amante apaixonada e correspondida soube dizer adeus às suas memórias afetivas no pós-vida. Eu posso ter sido correspondida por um instante que perdurou uma madrugada inteira, mas a que preço e como? A que peso e por quê?
Tantas perguntas e, como sempre, eu sentia que somente Gomes poderia respondê-las. Os únicos enigmas que ela não sabia decifrar eram aqueles que envolviam o que ela sentia por mim, o que levou às nossas confissões imaturas e entusiasmadas naquela noite de 1905. A ironia era que eu, como sua parceira de investigação, tinha o dever de auxiliá-la a chegar em suas conclusões, mas, na mais crucial das dúvidas, fui apenas o pivô de suas incertezas.
Tudo isso para que eu escutasse “Eu queria que aquilo nunca tivesse acontecido”. Cerrei o punho enquanto seu olhar atento ainda vagava sobre mim. Queria me vingar, puxá-la daquela conversa com o delegado, empurrá-la contra a parede e dizer-lhe com todas as forças que também me arrependia, que eu não a amava e nunca amei, que eu tinha encontrado o amor em uma pessoa que era melhor para mim, que ela era culpada por nos destruir… Queria machucá-la como ela havia me machucado, ao mesmo tempo que queria demonstrar exatamente o contrário de todas aquelas palavras.
Eu não sabia o que ela enxergou em meus olhos ao trocarmos essa faísca introspectiva, mas sua expressão ao retomar a conversa com o delegado era exatamente a mesma de quando Gomes queria chorar. Fiz menção de avançar até ela para abraçá-la e dizer que tudo ficaria bem, que ela não precisava se sentir daquele jeito, mas senti um punho firme ao redor do meu pulso machucado. Gemi de dor e encarei os olhos astutos de minha mãe no interior do carro, uma severidade que me corroía e paralisava.
— Entre no carro, Louise. Vamos encontrar teu noivo — disse, sem espaço para um “não”. Adentrei o veículo, só depois notando a presença de meu pai, que sorriu para mim e me perguntou algo que não ouvi, ou, se ouvi, talvez tenha respondido de forma automática.
Sentia como se a dor em meu pulso estivesse anestesiada por uma dor ainda pior, que não vinha de qualquer lugar que eu pudesse diagnosticar, e sentia que tampouco levaria a algum lugar.
Mas, como dissera minha mãe, havia alguém me esperando, alguém com certezas, e aquilo deveria ser o suficiente.
Fim.
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CRÉDITOS
Autora: Giu Yukari Murakami
Edição: Bárbara Morais e Val Alves
Preparação: Val Alves
Revisão: Gabriel Yared
Diagramação: Val Alves
Título tipografado: Fernanda Nia
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Palacete de Memórias foi uma grande aventura, e ele se encerrou hoje para quem decidiu ler semanalmente, mas tem mais aventuras das nossas formidáveis por vir no futuro, viu? Muito obrigada por apoiar o trabalho da Noveletter, e mais ainda por apoiar a Giu e suas formidáveis! Você é incrível!
Como comentei lá em cima, logo voltarei com atualizações, viu?!
A dor, ela dói, sabe?